A ressaca de dois dias é real, e por que ela piora com a idade
O corpo trêmulo, a cabeça pesada, uma sensação difusa de ansiedade. Para muitos, o dia seguinte a uma noite de copos cheios já não se resolve mais com algumas horas de sono e um prato substancioso. Passados os 30, a recuperação tende a ser mais lenta e, em alguns casos, se estende por dois dias inteiros. O que antes era mero desconforto matinal se transforma em um mal-estar persistente, que compromete o humor, a produtividade e até a clareza de pensamento.
Quando o corpo deixa de acompanhar
A juventude oferece certa complacência com os excessos. Até os 30 e poucos anos, a maioria consegue enfrentar festas longas e bebidas em excesso com relativa resiliência. Mas essa capacidade tem prazo de validade. Por volta dos 35, os sintomas deixam de ser passageiros e passam a cobrar juros pesados. Uma simples comemoração pode significar dois dias de ressaca, às vezes até mais.
Casos extremos foram documentados. O mais notório, publicado no The Lancet, descreveu um homem de 37 anos que, após consumir 60 pints de cerveja em quatro dias, enfrentou mais de um mês de dores de cabeça e visão turva. Ainda que raros, episódios como esse mostram como o organismo pode reagir de forma imprevisível ao álcool.
O que a ciência já sabe
As pesquisas sobre ressaca se concentram, em grande parte, em estudantes universitários. Isso limita a compreensão dos efeitos em pessoas mais velhas. Ann-Kathrin Stock, neurocientista da Universidade Técnica de Dresden, alerta que a maioria dos dados existentes não contempla adultos de meia-idade, justamente os que mais relatam ressacas prolongadas.
O holandês Joris Verster, referência mundial no tema, já catalogou 47 possíveis sintomas associados a uma forte ressaca. A lista vai além da dor de cabeça e da sede. Inclui apatia, impulsividade, calafrios, sensibilidade à luz e ao som, além de distúrbios cognitivos e, em casos graves, pensamentos suicidas.
Ainda que fatores genéticos influenciem, a explicação mais aceita é que a forma como envelhecemos afeta diretamente a capacidade do organismo de metabolizar o álcool.
O papel da inflamação e do fígado
Segundo Sam Royle, pesquisador da Universidade de Salford, a ressaca é uma resposta inflamatória do corpo ao álcool. Com a idade, o sistema imunológico perde eficiência e se torna mais sensível a esse processo, prolongando os sintomas. Pessoas com condições inflamatórias crônicas, como asma ou alergias, sofrem de maneira ainda mais intensa.
O fígado também pesa na equação. Ele utiliza enzimas específicas para processar o álcool, mas com o tempo sua eficácia diminui. O resultado é uma metabolização mais lenta, que prolonga a exposição do corpo às toxinas e amplifica a inflamação.
Há ainda um fator pouco lembrado: a perda natural de massa muscular após os 35 anos. Com menos músculos, o corpo dilui o álcool de forma menos eficiente, aumentando sua concentração no sangue. Isso significa ressacas mais fortes com doses menores.
Consequências para corpo e mente
O impacto da ressaca de dois dias não se restringe ao desconforto físico. A concentração cai, a memória falha, o raciocínio fica lento. Estudos sugerem que episódios repetidos podem acelerar processos de degeneração cognitiva, já que a inflamação constante afeta diretamente o funcionamento do cérebro.
Alguns grupos são ainda mais vulneráveis. Pessoas com variantes genéticas que dificultam a quebra do acetaldeído, substância tóxica derivada do álcool, podem apresentar reações severas mesmo com pequenas doses. Para elas, a recomendação médica é simples: evitar completamente o consumo.
Ressaca ou abstinência?
Em casos de consumo frequente, sintomas muito intensos podem não ser apenas ressaca, mas sinais de abstinência alcoólica. A diferença principal está na duração. A ressaca tende a se dissipar em um ou dois dias. A abstinência pode persistir por uma semana ou mais, trazendo tremores, arritmias, alucinações e convulsões. Nessa situação, a orientação é procurar ajuda médica imediata.
Existe cura rápida?
O mercado está repleto de suplementos que prometem acabar com a ressaca. A maioria carece de evidências sólidas. Pesquisadores analisaram mais de 80 produtos disponíveis e não encontraram comprovação de eficácia consistente. A recomendação segue sendo simples: hidratar-se, alimentar-se bem, descansar e, quando possível, caminhar para ativar a circulação.
Como prevenir
Evitar a ressaca de dois dias exige mais do que moderação na taça. Rotinas de sono regulares, exercícios físicos e controle do estresse ajudam a reduzir a inflamação de base que agrava os sintomas.
Alguns avanços tecnológicos chamam atenção. O comprimido sueco Myrkl, que combina probióticos, vitamina B12 e L-cisteína, promete reduzir a absorção do álcool antes que ele chegue ao fígado. Resultados iniciais são mistos. Em festivais longos, parece funcionar; em eventos de consumo concentrado, os efeitos são mais limitados.
Nos Estados Unidos, a farmacêutica Sen-Jam testa um composto experimental chamado SJP-001, que combina um anti-histamínico e um anti-inflamatório não esteroidal para bloquear a reação inflamatória ao álcool. Os primeiros estudos indicam melhora em sintomas como dor de cabeça, náusea e tontura, mas especialistas advertem que dificilmente haverá uma solução única capaz de eliminar todos os efeitos da ressaca.
Um alerta do corpo
Seja qual for a promessa da ciência, uma verdade permanece. A ressaca de dois dias é um lembrete biológico de que os anos não passam impunes. O corpo fala em tom claro e áspero. Cabe a nós decidir se vamos ouvi-lo.